Cidadãs recordam episódios de violência durante ocupação indonésia e pedem reconhecimento a Governo

A Associação Chega! Ba Ita (Acbit) registou 727 cidadãs que sofreram violência sexual durante o período da ocupação indonésia em Timor-Leste/Foto: Diligente

“Não pegámos em armas, mas o nosso corpo sofreu durante a Resistência”, diz uma sobrevivente durante um encontro no Centro Nacional Chega!. Vítimas dizem sofrer de discriminação e sentem-se “marginalizadas”.

Mulheres que foram vítimas de violência física e sexual às mãos dos militares indonésios nos 24 anos de ocupação em Timor-Leste (1975-1999) reuniram-se na última quarta-feira (3.07) no Centro Nacional Chega! (CNC), em Díli, para voltar a exigir que o Governo reconheça os sacrifícios que fizeram pela independência timorense e para proteger as suas famílias. O grupo apela para que as autoridades ofereçam algum tipo de apoio, já que muitas cidadãs se sentem “marginalizadas” pela sociedade e ainda convivem com traumas do passado.

No encontro, as mulheres tiveram a oportunidade de partilhar histórias perante representantes do Conselho de Assessoria Internacional – órgão de consulta, apoio e participação na definição das linhas gerais de atuação do CNC (instituto público que atua na preservação da memória timorense).

“Não foram só os homens que lutaram, as mulheres também participaram na luta. Não pegámos em armas, mas o nosso corpo sofreu durante a Resistência. Algumas foram violadas dentro da prisão e outras, como no meu caso, na sua própria casa pelos militares indonésios. Em 1976, os tanques de guerra dos indonésios pararam atrás da nossa casa, em Díli. O meu pai e o meu irmão fugiram. Fiquei em casa com a minha mãe e um tio. Na altura em que fui violada, tinha 14 anos”, testemunhou Isabel Jesus da Silva.

A vítima, agora com 63 anos, mostrou-se revoltada com a falta de ação do Governo, “que não reconhece as dificuldades enfrentadas pelas mulheres durante a ocupação indonésia em Timor-Leste”.

“Sentimo-nos marginalizadas. As pessoas esquecem-se do que passámos. Nós lutámos pela independência de Timor-Leste e, até hoje, não somos reconhecidas por isso. Pelo contrário, eu e muitas de nós somos discriminadas”, afirmou.

Como resultado da violência sofrida nas mãos dos indonésios, Isabel Jesus da Silva teve uma filha. Sua herdeira, sublinhou, enfrenta estigmas e sente dificuldades em encontrar trabalho, por ser considerada “filha de milícia”. “Já somos velhos e temos pouco tempo para viver, então pedimos ao Governo que dê outras garantias aos nossos filhos”, disse a mulher.

Outra cidadã que partilhou a sua história no encontro foi Olga Quintão Amaral, 53 anos, que chegou a ser presa e torturada. “Os militares arrancaram-me as unhas das mãos e dos pés, eletrocutaram-me, espezinharam o meu corpo e violaram-me”, recordou, emocionada.

A cidadã lamentou que, ainda hoje, ela e grande parte das mulheres que sofreram violência por parte dos militares indonésios são julgadas e insultadas – geralmente por homens – com termos pejorativos, “mesmo depois de casar”.

“Esta foi a nossa história, porque cumprimos as orientações dos nossos superiores, dos líderes da Resistência. Mas depois fomos esquecidas. Já que não nos querem ver, pedimos a nossa virgindade de volta. Podem devolvê-la? Os homens referem-se a nós como restos do exército indonésio”, desabafou.

A cidadã apelou ao Governo para que alguma ação seja desenvolvida no sentido de combater a discriminação, recuperar e valorizar a dignidade das mulheres que foram submetidas a muitos episódios de violência durante os 24 anos da ocupação indonésia.

“Sou, ao mesmo tempo, mãe e pai dos meus cinco filhos. O meu marido deixou-me porque sou o ‘resto do inimigo’. Tenho de me esforçar sozinha para pagar os estudos dos meus filhos”, confidenciou.

Por sua vez, Florência Freitas, 46 anos, sobrevivente de um caso de violência sexual em Díli por milícias indonésias em 1999, lamentou a falta de capacidade das autoridades em reconhecer o papel feminino durante a Resistência.

“Condecora-se muita gente em Timor-Leste, todos os anos, mas nós, as vítimas de violência durante um período histórico do nosso país, nunca somos lembradas. Nunca recebemos um abraço dos nossos líderes. Pensam que estamos bem, mas, na verdade, não estamos”, afirmou em voz alta, e desfez-se em lágrimas.

A diretora da Associação Chega! ba Ita (ACbit), Manuela Leong Pereira representou a sua organização, que tem atuado na proteção e apoio das cidadãs que sofreram algum tipo de violência durante a ocupação. Manuela Leong informou que a maioria das mulheres vive nas áreas rurais e que as suas vidas são muito difíceis. A representante da ACbit diz ter identificado 727 cidadãs vítimas de violência sexual e que grande parte delas (78%) já são idosas.

“Estamos a trabalhar com vítimas em 12 municípios, incluindo a RAEOA, mas ainda não chegámos a todas as cidadãs”, disse.

A diretora afirmou que há vítimas com doenças e a precisar de ajuda. Sem apoio das famílias, muitas delas morrem sem ir ao hospital. “Já faleceram 25 pessoas com quem trabalhámos durante algum tempo, que nos contaram todas as suas histórias. Também estamos a acompanhar 65 pessoas que estão doentes”, contou.

No encontro, Manuela Leong também expôs que a organização identificou 87 pessoas que nasceram fruto das violações cometidas pelos militares indonésios.

A diretora da ACbit apelou à ação dos governantes. Que “façam algo”, como implementar um programa de reconhecimento das cidadãs que foram vítimas de violência, e deem o apoio necessário. Pede ainda às organizações da sociedade civil, nacionais e internacionais, para trabalharem em conjunto na identificação das mulheres que sofreram abusos, e que essas informações sejam utilizadas para pressionar as autoridades.

Em sua intervenção, o representante do Conselho de Assessoria Internacional, Gus Miclat, considerou que as novas gerações devem aprender a história e respeitar as vítimas. “O que as vítimas sentem não são apenas as feridas dos timorenses, mas é uma dor partilhada por todos nós, aqui e nos outros países”, partilhou.

CNC compromete-se a melhorar atendimento das vítimas

O diretor-executivo do Centro Nacional Chega (CNC), Hugo Fernandes, informou que o Governo atribuiu a competência ao instituto público de dar apoio às vítimas de violência durante a ocupação indonésia.

“Temos dois tipos de apoio: o apoio individual e o coletivo. No apoio individual, construímos casas e prestamos auxílio, seja ele humanitário, económico, burocrático. A nível coletivo, fazemos o registo de memórias e juntamos grupos de sobreviventes”, detalhou.

Hugo Fernandes afirmou que, durante o seu mandato no CNC, já foram inauguradas, em Díli e noutros municípios, 18 casas para cidadãos que foram alvo de violações dos direitos humanos. Para este ano, devem estar concluídas mais três casas. O CNC, de acordo com Hugo Fernandes, também já disponibilizou 11 bolsas de estudo a filhos das sobreviventes “e vai colaborar com o Fundo do Desenvolvimento de Capital Humano para garantir a atribuição de mais bolsas”.

Formado por membros de nove países (Portugal, Japão, Canadá, Malásia, Filipinas, Camboja, Indonésia, África do Sul e Peru), o Conselho de Assessoria Internacional vai trabalhar com o CNC nos próximos três anos para tentar melhorar o atendimento aos cidadãos que foram abusados por militares do país vizinho nos 24 anos de ocupação.

O Governo timorense possui um Fundo específico (Fundo dos Combatentes da Libertação Nacional) para atribuir subsídios às pessoas que participaram na Resistência.

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  1. É muito triste constatar a penúria de pessoas que muitas vezes se encontram invisíveis para a sociedade.. demonstra de certo modo uma.continuição dos absurdos que acompanham as guerras de dominação dos povos..
    Vejo.que o genero feminino tem destaque em sua função de objeto sexual como moeda de troca..É lamentável que ainda na atualidade isso continua acontecendo em vários países.

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